quinta-feira, 25 de março de 2010

A la folie... pas du Tout (Bem me quer, mal me quer)

INTRODUÇÃO

Lançado em 2002, esse filme francês é uma obra extremamente elucidativa acerca de um transtorno muito pouco abordado no cinema: a Erotomania.
Tendo como protagonista a premiada atriz francesa Audrey Tautou, e contando com a participação de Samuel Le Bihan no papel de Löic Le Garrec, o objeto de desejo e admiração de Angélique (Audrey Tautou), o filme é uma verdadeira expressão de bom gosto cinematográfico.
A técnica utilizada na filmagem desse longa metragem é muito adequada à temática, pois na Erotomania há sempre dois pontos de vista bastante dicotômicos e difíceis de conciliar. Essa filmagem em duas ópticas, em dois tempos, como se a segunda parte do filme fosse um flashback da primeira torna bem claro o conflito central.

O OLHAR DE ANGÉLIQUE

“Je n’ai personne, vous seul (Não tenho ninguém, só você)”

#1 Recebeu uma rosa como prova indiscutível do amor de Löic.
#2 Presenteia o amado com uma rosa, mantendo com ele um vínculo afetico.
#3 Pinta um belo quadro para presentear Löic, no dia de seu aniversário. O doutor exibe o quadro em seu consultório como outro sinal de envolvimento.
#4 Löic arranjou um pretexto para ir sozinho ao congresso, para poder desfrutar da compania de Angélique.
#5 Quando se encontram no banheiro do evento, Löic propõe que Angélique vá beber com ele e a esposa qualquer dia, como um sinal de que estaria a desafiar sua mulher.
#6 Löic se oferece para deixar Angélique em casa, pois ele seria incapaz de permitir que a mulher amada fosse sozinha para casa.
#7 Löic posa para que Angélique o desenhe no parque, enquanto brinca com o filho de um amigo.
#8 Bate em sua porta para vê-la, desesperado de saudade.
#9 Deixa cair um lenço disfarçadamente, para que Angélique saiba que, apesar de estar saindo com a esposa, ele não a consegue esquecer.
“Merci por ce cadeau que tu m’as laissé de toi. Je te respire, je te sens, je te tiens près de moi. Je le garde a mon cou em souvenir du jour òu tu m’as déclaré ta flamme et ton amour. (Obrigada pelo presente. Eu respiro você, sinto você, tenho você preso a mim. Eu o uso no pescoço como lembrança do dia em que me declarou o seu amor eterno)”
#10 Nas palavras de Angélique, ao vê-la desacordada, “Ele me salvou. Ele me ressucitou. Ele me tirou do nada.”
#11 No hospital, após a tentativa de suicídio, Löic diz para Angélique procurá-lo quando estiver melhor. Para ela, o amado está tentando consertar os próprios erros, voltar atrás e se redimir.


O OLHAR DE LÖIC

“C’est comme si elle imaginait que je lui envoie des signes, des messages (É como se ela imaginasse que eu envio sinais, messages)”
#1 Ao se deparar com a notícia de que a mulher estava grávida, Löic comprou um buquê de rosas para presenteá-la. No caminho encontrou a vizinha e, irradiando felicidade, ofereceu-lhe uma rosa.
#2 Recebe uma rosa na manhã de seu aniversário com um bilhete com os seguintes dizeres: “Mon cœur est à toi pour toujours (Meu coração é seu para sempre)”. Ele então interpreta que o remetente do cartão é a sua esposa.
#3 Recebe um belo quadro com uma pintura sua no dia de seu aniversário, de uma paciente agradecida.
#4 Devido à gravidez, a esposa de Löic preferiu permanecer em casa para descansar. O Dr. Le Garrec comparece ao congresso sozinho.
#5 Ao descobrir que conversava com sua vizinha ele gentilmente a convidou para ir beber com eles qualquer dia.
#6 Mais uma gentileza com a vizinha, o Dr. Le Garrec oferece-lhe uma carona.
#7 Löic brinca distraidamente com o filho de um amigo, sem saber que estava sendo observado e desenhado.
#8 Ao perceber que não havia mais leite em sua casa e, estando a esposa grávida, ele bate à porta da vizinha para perguntar-lhe se haveria leite em sua casa.
#9 Löic nem percebeu que o lenço de sua esposa caiu. Da mesma forma, ao receber o bilhete de agradecimento, ficou sem compreender.
 “Merci por ce cadeau que tu m’as laissé de toi. Je te respire, je te sens, je te tiens près de moi. Je le garde a mon cou em souvenir du jour òu tu m’as déclaré ta flamme et ton amour. (Obrigada pelo presente. Eu respiro você, sinto você, tenho você preso a mim. Eu o uso no pescoço como lembrança do dia em que me declarou o seu amor eterno)”
#10 Como médico, Löic realizou um procedimento de emergência com o objetivo de salvar a vida de Angélique.
#11 Mais uma gentileza do Dr. Le Garrec é mal compreendida por Angélique.
 No hospital, após a tentativa de suicídio, Löic diz para Angélique procurá-lo quando estiver melhor. Para ela, o amado está tentando consertar os próprios erros, voltar atrás e se redimir.



TRANSTORNO DELIRANTE PERSISTENTE (F22)

Categoria que reúne as entidades denominadas por Kraeplin como paranoia (para: ao lado de; noos: conhecimento) e parafrenia (frenos: alma), quadros pertencentes ao espectro da esquizofrenia (as psicoses) mas que, diferentemente desta, não apresentam deterioração ou desestruturação psíquica grave.
Esse transtorno tem como principal característica a presença de delírios não-bizarros (em contraposição aos delírios esquizofrênicos), sistematizados, bem estruturados e cujo conteúdo é passível de realização. No caso de Angélique, vemos que seria perfeitamente possível que o Dr. Le Garrec se apaixonasse por ela e com ela vivesse uma relação extraconjugal.
Para se fechar o diagnóstico de Transtorno Delirante Persistente o paciente nunca deve ter preenchido diagnóstico de Esquizofrenia (F20) e devem ser excluídas causas orgânicas, como abuso ou abstinência de substâncias ou outras patologias.
De acordo com a CID10, o transtorno (os delírios) devem estar presentes há pelo menos 3 meses (mais de um mês segundo o DSM-IV). Os transtornos delirantes persistentes tem início um pouco mais tardio do que a Esquizofrenia, que tem pico de incidência entre os 15 e 25 anos de idade, sendo sua incidência maior na meia idade.
Há vários subtipos de Transtornos Delirantes Persistentes, de acordo com o conteúdo predominante das ideias delirantes do paciente, quais sejam: de grandeza, de ciúme, persecutórios, erótico (Erotomania ou Síndrome de Clérembaut), somático, misto e não especificado.

SÍNDROME DE CLÉREMBAUT

A erotomania consiste num delírio em cujo conteúdo a pessoa é amada por uma personalidade de destaque na sociedade que, de maneira geral, nunca teve nenhum  contato mais próximo com o paciente.
Esses pacientes interpretam sinais mínimos como sendo claramente reveladores de uma paixão avassaladora. No caso do filme em questão, o sinal foi a entrega de uma rosa a Angélique que, sem conhecer o verdadeiro motivo dessa atitude, viu-se no centro da atenção de Löic.
O delírio é tão bem estruturado e coerente que, ao longo do filme, Angélique consegue justificar cada um dos desencontros com o seu amado:
I) -C'est un peu délicat, en ce moment. Ils connaissent tous très bien sa femme, ici.
   -Sa femme? Parce qu'en plus il est marié?
   -A une avocate mais ça marche plus. Il va la quitter.
"Nessa cena Angélique justifica que se trata de uma situação complicada, uma vez que todos conhecem a esposa de Löic. Fala também que ele irá deixá-la.
II) -Et toi, t'arrives à supporter ça?
    -C'est pas évident pour lui non plus.
"Angélique justifica o fato de ter de suportar a ausência de Löic, pois é uma situação complicada para ele também."
III) -Mais, attends, Angélique! Elle est enceinte d'au moins cinq mois!
    -Ce bébé, elle l'a fait pour le piéger! T'as pas vu son cinéma avec son gros ventre? Elle fait tout pour l'empècher de partir. S'il y avait pas de bébé il l'aurait quittée depuis longtemps.
" Angélique afirma que, se a esposa de Löic não estivesse grávida, fato este que, segundo ela, trata-se de uma jogada para mantê-lo preso, ele já a teria deixado. Ela também se sente agredida psicologicamente pela visão da barriga volumosa da esposa de seu amado."


TRATAMENTO

Tidos como excêntricos apenas, pacientes com trnstornos delirantes persistentes raramente procuram tratamento médico. São mais comumente postos em contato com um psiquiatra quando seu transtorno gera problemas jurídicos ou legais (a decepção proporcionada pelo encontro entre Angélique, cheia de expectativas, e Löic que, sentindo-se extremamente pressionado, a confronta negando que os dois possam ficar juntos, leva à ocorrência de um crime passional, uma tentativa de homicídio).
Quando em tratamento, esses pacientes se beneficiam parcamente de farmacoterapia (esta à base de antipsicóticos). A hospitalização foi extremamente necessária, pois Angélique se tornou perigosa ao convívio social em função de seu delírio; outra linha de atuação de que se deve lançar mão é a psicoterapia, principalmente para reabilitá-la socialmente.
A resistência de Angélique aos medicamentos e a adequação circunstancial à psicoterapia, afirmando ter juízo crítico de que não estava vivendo uma realidade só reforça a ausência de prejuízo nas demais esferas psíquicas, como a inteligência, por exemplo.


#A ELETROCONVULSOTERAPIA#

A prática de aplicar eletrochoques em pacientes psiquiátricos sempre foi muito explorada pelo cinema devido ao seu conteúdo dramático potencial.
Com o intuito de induzir, de forma controlada, convulsões generalizadas em pacientes graves (depressão grave, intratável farmacologicamente, com forte ideação suicida; mania intratável; catatonia; sintomas psicóticos), a eletroconvulsoterapia (ECT) é ainda uma forma de tratamento muito controversa, a despeito de toda a evolução que esta modalidade terapêutica vem sofrendo.
As cenas clássicas em que o paciente permanece acordado durante as sessões não correspondem à realidade técnica atual. Antes realizada com a injeção de fármacos e sem cuidados gerais com o paciente, a técnica evoluiu bastante e, hoje, inclui cuidados como: anestesia, sedação, oxigenação, monitoração eletrocardiográfica, eletroencefalográfica e oximetria de pulso, relaxamento muscular e controle de corrente elétrica, de forma a minimizar danos sobre o tecido cerebral.
A ECT teve sua utilização padronizada pelo CFM desde 2002 e é o método mais eficaz na depressão grave, demonstrando resposta favorável em 80% dos casos. A marcante evolução da técnica levou a uma drástica redução nos efeitos colaterais (além da dificuldade de discriminar se tais efeitos se devem à ECT ou à doença de base).
A observação de que pacientes esquizofrênicos portadores também de epilepsia melhoravam dos sintomas psicóticos após uma crise convulsiva foi o pontapé inicial para o desenvolvimento da ECT.
Angélique, contudo, não é a paciente ideal para a ECT, pois os transtornos delirantes crônicos são preditores de má resposta.


"Bien que mon amour soit fou, ma raison calme les trop vives douleurs de mon coeur en lui distant de patienter et d'espérer toujours..."

Une erotomane internée pendant plus de cinquante ans


("Embora o meu amor seja insano, a minha razão alivia a dor do meu coração dizendo-me para ser paciente e nunca perder a esperança..."
Uma erotomaníaca internada há mais de cinquenta anos.)

segunda-feira, 8 de março de 2010

Girl, interrupted.

GIRL, INTERRUPTED.

INTRODUÇÃO

Baseado no livro homônimo escrito por Susanna Kaysen, esse filme de 1999 é um retrato emocionante do cotidiano de uma jovem portadora de Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável tipo Borderline (F60.31, segundo a décima edição da Classificação Internacional de Doenças).
O filme tem como protagonista a atriz Winona Ryder e conta com a excelente participação de Angelina Jolie vivendo uma sociopata.
Além disso, merecem destaque as atrizes Brittany Murphy, que vive a personagem Daisy Randone, uma jovem atormentada pela relação incestuosa com seu pai há décadas; Vanessa Redgrave, que interpreta a psiquiatra Dra. Wick; e a fantástica Whoopi Goldberg no papel da enfermeira Valerie.


"Have you ever confused a dream with life, or stolen something when you have the cash?
Have you ever been blue or thought your train moving while sitting still?
Maybe I was just crazy...
Maybe it was the 60s,
or maybe I was just a girl, interrupted!"

Essa é a introdução do filme. A partir dessa visão, a protagonista (vivida espetacularmente por Winona Ryder) inaugura a incrível jornada ao interior de seu problema.
Uma das cenas mais marcantes é a inicial, em que Susanna é levada às pressas numa ambulância após ter ingerido uma quantidade enorme de aspirinas e de vodca, numa tentativa desesperada de alívio para sua dor de cabeça.
Como é comum em pacientes Borderline, podemos observar nessa cena a tendência a comportamentos autodestrutivos e a impulsividade levadas ao extremo, pois, a princípio, a paciente desejava apenas aliviar a sua dor. No entanto, avaliou mal as consequências da ingestão exagerada de tantos medicamentos e bebida alcoólica.
O tratamento instituído é Valium (diazepam) 5mg intramuscular, que é o tratamento preconizado por Bialer (2002) e que tem por objetivo estabilizar o paciente através do controle de quaisquer alterações do humor, quadros de ansiedade intensa associada ou não a agitação psicomotora.
O diazepam é um medicamento da classe dos benzodiazepínicos, os bem conhecidos 'calmantes' ou ansiolíticos, cuja ação é a ocupação de sítios alostéricos situados nos receptores GABAérgicos, assim facilitando a ligação entre esses receptores e o neurotransmissor inibitório chamado GABA, daí a ação de controle da ansiedade.
Uma alternativa ao quadro de agitação psicomotora intensa é o Haldol (haloperidol) 2-5mg por via oral ou intramuscular. O haloperidol é um antipsicótico típico, de primeira geração, pertencente ao grupo das butirofenonas que atua principalmente através do bloqueio dos receptores dopaminérgicos D2. Sua atuação dá-se sobre as diversas vias dopaminérgicas do encéfalo, quais sejam: mesolímbica, a mais envolvida nos sintomas positivos da esquizofrenia, como os delírios e alucinações; a mesocortical; a nigroestriatal, envolvida na modulação dos movimentos; e a tuberoinfundibular, responsável pelo feedback negativo exercido pela dopamina sobre a secreção de prolactina.




“I feel like there are no bones in my hands”


Susanna se utiliza parcialmente desse delírio para justificar sua tentativa de suicídio.
A essa idéia errônea de que não se possui um órgão ou de que esse perdeu sua função dá-se o nome de Delírio Niilista, também chamado delírio de negação ou de Cotard. Considerado o extremo do delírio hipocondríaco, o delírio niilista pode associar-se a alucinações negativas, casos em que os pacientes chegam a negar os próprios sentidos e até a afirmarem já estarem mortos.
Merece também destaque, nessa mesma cena, a percepção errônea que Susanna tem acerca do tempo, afirmando sentir que o tempo pode ir para trás ou para frente e que ela não tem qualquer controle sobre o tempo. A essa percepção errônea da sequência cronológica que nos envolve dá-se o nome Discronia.


“You look normal”


Sentença proferida pelo motorista do táxi a Susanna quando de sua trajetória rumo à institucionalização. Aqui ele reproduz um estereótipo secularmente construído e bem estabelecido acerca do doente mental (mais particularmente aqueles que necessitam ser internados).
Essa frase resume toda a ideia que ainda circula entre boa parte de nossos concidadãos: de que os institucionalizáveis são apenas os visivelmente loucos, os muito alterados. No entanto, e esse é um dos motivos pelos quais no Brasil e, particularmente no Ceará, o número de “casas de repouso” é limitado, a Reforma Psiquiátrica vem tentando desestigmatizar o doente mental, sem retirá-lo do convívio social ou, quando retirando, tentando reintegrá-lo o mais brevemente possível.
Críticas a esse fato se dão no sentido de que o tratamento humanizado do paciente psiquiátrico não necessariamente se opõe a institucionalização, principalmente quando essa se faz necessária (com indicações precisas como: depressão refratária com risco de suicídio; fase maníaca incontrolável; personalidades que ofereçam algum tipo de risco às pessoas do convívio do paciente, como é o caso de alguns psicopatas de difícil inserção social; pacientes agressivos; etc).
No caso de Susanna Kaysen, a principal indicação seria a tentativa de suicídio e as atitudes autodestrutivas, e não o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline per si.



                      

“Everyone here is fucking crazy”


 Durante sua internação no Hospital Psiquiátrico de Claymoore, Susanna entra em contato com várias outras pacientes, cada uma com um diagnóstico diferente e peculiar.
A primeira com quem ela entra em contato é Georgina Tuskin, internada com o diagnóstico de Pseudologia Fantástica (sic), que ela em seguida esclarece: sou uma mentirosa compulsiva (segundo a CID 10, podemos diagnosticá-la como sendo portadora de um Transtorno dos Hábitos e Impulsos, não especificado, F63.9).
Um comportamento compulsivo segue, em grande parte dos casos, a um ciclo vicioso de pensamentos de conteúdos obsessivos sobre os quais a paciente tem insight, ou seja, reconhece como absurdos e inadequados, contudo, sem ter o poder de controlá-los ou de inibi-los. A esses pensamentos associa-se grande ansiedade, esta sendo aliviada pelos atos compulsivos realizados em seguida. Caracteriza-se, então, os pensamentos obsessivos como a Fase de Intenção e os atos compulsivos como a Fase de Execução. Observa-se, portanto, uma falta de autonomia tanto sobre a ocorrência da obsessão quanto sobre o controle da compulsão.
O contato seguinte se dá de forma bastante impactante. Lisa Newport, uma paciente sociopata (de acordo com a CID 10, uma portadora de transtorno de Personalidade Dissocial, F60.2), apresenta-se como o maior desafio da clínica psiquiátrica. Bastante agressiva, manipuladora, intolerante a frustrações e facilmente irritável acaba se tornando um ponto de apoio para a protagonista durante a maior parte da trama. Em várias cenas percebe-se o quanto Lisa tem regalias no hospital, como por exemplo receber esmaltes e ter seu cigarro aceso por uma das enfermeiras. A personalidade de Lisa é bem abordada em duas cenas: a primeira, quando ela incita e instiga Daisy, expondo seus problemas, o que acaba levando-a a cometer suicídio; a segunda quando Susanna tem a sua mão machucada por uma pesada porta de ferro e Lisa não expressa nenhuma emoção ao ver a "amiga" sofrer.
Daisy Randone, a personagem mais reclusa, tem história de relações sexuais incestuosas com o pai (não usarei o termo abuso sexual, pois a narração deixa a entender que há permissividade por parte de Daisy), anorexia (nunca come com as outras pacientes e esconde o alimento que recebe, o que, aliás é uma característica dos pacientes portadores de transtornos alimentares, que preferem se alimentar sozinhos, pois o ato de comer vem carregado de um forte conteúdo emocional e de ansiedade), preferência alimentar patológica por frango e constipação crônica.
Polly Clark é uma mulher com o rosto desfigurado desde a infância, quando se banhou em gasolina e ateou fogo sobre a própria pele quando soube que não poderia mais criar seu cachorrinho por ser alérgica ao pêlo desse animal. Desde então, apresenta um comportamento pueril e uma marcante regressão psicológica, ainda se comportando como uma criança.


"I´m ambivalent"

O psiquiatra se recusa a falar do diagnóstico de Susanna na frente dela, afirmando que ela só iria piorar de seu quadro.
Contudo, sabe-se que uma parte importante da terapia está na compreensão, por parte do paciente, da sua condição. A própria Susanna, em uma cena posterior comenta isso, afirmando: Como posso me curar se não compreendo minha doença?
A descrição da personalidade Borderline no filme é a seguinte: instabilidade da autoimagem, dos relacionamentos e do humor, incerteza sobre metas, compulsão por atividades autodestrutivas como o sexo casual. Costuma-se observar também atitudes antissociais e pessimistas.


“You´re hurting everyone around you”


O impacto de um transtorno de personalidade recai principalmente sobre as pessoas do convívio do paciente.
Os pacientes Borderline possuem uma instabilidade afetiva com consequente reatividade acentuada do humor, ou seja, são extremamente sensíveis aos mínimos estímulos, a eles então reagindo de forma desproporcionalmente agressiva, temerosa ou desesperançosa. Esse fato, por si só torna o convívio com um Borderline difícil. Some-se a isso o fato de que a maioria das pessoas desconhece esse transtorno ou, quando conhece, não o compreende de forma ampla, percebemos então que as relações interpessoais tornam-se quase um desafio a esses pacientes, que estão o tempo todo lutando contra si mesmos e contra as ideias erroneas e o preconceito das pessoas ao seu redor.




“I have friends here”


A ligação existente entre as personagens Susanna e Lisa baseia-se em parte, na teoria dos contrários de Platão.
Essa teoria afirma que cada coisa (incluindo as pessoas) possui um contrário mas tende a negá-lo. Lisa opõe-se à Susanna por ser desinibida, provocativa, manipuladora, sempre se colocando ativamente em relação às outras pacientes. Lisa expõe a todas as pacientes percepções perturbadoras sobre cada uma delas, chegando a ser indiferente perante o sofrimento. Consegue, contudo, ser leal a Susanna quando esta tem um encontro com o namorado no hospital.
Susanna se coloca, durante a maior parte do filme, em posição de extrema dependência, tanto em relação aos pais quanto em relação à Lisa (substituição) e, de certa forma, sente-se protegida por ela.
Mas as semelhanças entre ambas são mais marcantes que as diferenças. Elas são facilmente irritáveis, não toleram contrariedades, possuem tendências a manter relações fugazes e enfrentam profundos sentimentos de vazio. Seria como se Susanna tentasse preencher o seu vazio com o vazio de Lisa.




“How we hurt the outside trying to kill what´s inside”


O objetivo é o controle!
A abordagem da Dra. Wick é crucial para a melhora de Susanna. Ela consegue intrigar a personagem a ponto da mesma parar de se opor à terapia e decidir, sozinha, pela recuperação. Apesar de deter o conhecimento e as técnicas psicoterápicas, o profissional nada pode contra alguém que não deseja recuperar-se.
A psiquiatra conseguiu estabelecer um boa relação com a paciente, baseada em confiança e apoio, dois alicerces importantes para a boa realização da terapia.



“Declared healthy and sent back into the world. My final diagnosis: a recovered borderline. What that means I still don´t know. Was I ever crazy? Maybe. Or maybe life is. Crazy isn´t being broken or swallow a dark secret. It´s you or me... amplified! If you ever told a lie and enjoyed it, if you ever wished you could be a child forever... They were not perfect but they were my friends!”

Um transtorno de personalidade pode ser compreendido como um conjunto de características que definem o indivíduo, a persona.
Segundo Sigmund Freud, a personalidade é uma esfera que se forma bastante precocemente na vida do indivíduo, já estando formada em torno dos 5 anos de idade. Jung afirma, no entanto, que o período crucial para se estabelecer a personalidade é a meia idade.
Embora haja divergências entre esses teóricos de importância inquestionável o fato é que a Personalidade acompanha o ser humano por toda a sua trajetória e, à medida que o tempo passa, torna-se cada vez menos complacente e menos modificável. Pensando de maneira bem simplista, se a personalidade define o indivíduo, modificá-la seria criar um novo ser sobre o arcabouço vazio do que um dia foi uma pessoa, incutindo a esta novas características.
A partir do exposto, não é possível curar um transtorno de personalidade, uma vez que tais características constituem o cerne sobre o qual se estruturou toda uma vida. Contudo, é perfeitamente possível para uma paciente Borderline, a partir da compreensão de sua doença e de um tratamento adequado (psicoterapia associada ou não a medicamentos) conviver bem consigo mesma e com os seus amigos e familiares.
É necessário ressaltar que o paciente deverá se dispor à constante terapia (‘para o resto da vida’). Mas se pararmos para pensar, essa terapia é apenas mais uma forma de autocuidado, como o são os hábitos de higiene, que executamos todos os dias, e executaremos pelo resto da vida.



Texto de responsabilidade total de Natália Suellen Braga da Silva.